dom, 19 de novembro de 2006
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O ministro Carlos Brito, relator da ADIN 3786, interposta pela ANAPE em face da resolução n.º 33 do Senado Federal - e permite aos entes municipais e estaduais e terceirizarem a cobrança de suas dívidas ativas - deferiu à Associação Nacional dos Procuradores Municipais, no dia 27 de outubro, a condição de amicus curiae na mencionada ação. Vale mencionar que o ministro já deferiu tal condição ao Sindicato Nacional dos Procuradores da Fazenda Nacional.

A seguir, a petição de amicus curiae levada a protocolo no STF pela ANPM:

Excelentíssimo Senhor Ministro CARLOS BRITTO

Relator da Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 3.786

Requerente: Associação Nacional dos Procuradores de Estado – ANAPE

Requerido: Senado Federal

SUMÁRIO

I – Sobre o amicus curiae

II – Dos requisitos para admissão do amicus curiae

II.1 – Da relevância da matéria

II.2 – Da representatividade e do interesse institucional da ANPM

III – Da oportunidade procedimental da intervenção do amicus curiae

IV – Da petição inicial da ação direta de inconstitucionalidade

V – Da Resolução n.º 33 do Senado Federal – ato impugnado

VI – Da natureza jurídica da terceirização da cobrança – endosso-mandato

VII – Da impossibilidade de delegação da advocacia pública – atividade típica de estado – competência privativa das procuradorias

VIII – Da competência dos municípios para instituir e arrecadar os tributos de sua competência – art. 30, III, da Constituição

IX – Da ofensa à reserva de lei complementar – art. 146, III, b, da Constituição – Da incompetência do Senado Federal – Da violação do poder do Presidente da República de iniciativa privativa de leis – art. 61, § 1.º, II, b, da Constituição

X – Da violação do art. 5.º, XII, da Constituição – Inviolabilidade do sigilo de dados – Ofensa ao sigilo fiscal

XI – Conclusão

Relação de documentos

A ASSOCIAÇÃO NACIONAL DOS PROCURADORES MUNICIPAIS – ANPM, sociedade civil com sede na rua Saturnino de Brito, 258, edifício Kiara, 2.º andar, Praia do Canto, Vitória, ES, registrada no Cartório de Registro Civil de Pessoas Físicas e Jurídicas de Vitória, ES, livro A-21, protocolo n.º 19245, folha 31, representada por seu Presidente, Carlos Augusto M. V. da Costa, vem requerer, por procurador, a intervenção nos autos do processo em referência, na qualidade de AMICUS CURIAE, nos termos do art. 7.º, § 2.º, da Lei n.º 9.868/1999, conforme razões a seguir expostas.

I – SOBRE O AMICUS CURIAE

O amicus curiae tem a figura de um terceiro interessado que intervém em processo pendente para ampliar o debate das questões jurídicas e permitir ao Judiciário conhecer e dimensionar os valores da sociedade civil e do próprio Estado.

A gênese do instituto encontra espaço na “abertura estrutural da Constituição” , que adicionou aos métodos tradicionais de interpretação aparato principiológico e valorativo hábil a ensejar maior participação do juiz no conhecimento dos fatos da sociedade, muito além da fórmula estanque de ser a “boca da lei”. A respeito, registrou PLAUTO FARACO DE AZEVEDO em sede doutrinária:

“Mas o que significa dizer-se que o juiz tem que abrir-se ao mundo? Significa pura e simplesmente que deve ele interessar-se pelo que se passa a seu redor. Precisa, antes de mais nada, conhecer os fatos que constituem a trama histórica de seu tempo, através da leitura e da observação. Só o hábito de perscrutar os acontecimentos lhe permitirá distinguir, no caudal infindável de informações característico do nosso tempo, a verdade da mistificação, o fio condutor da verossimilhança histórica do jogo ideológico reprodutor de condições econômicas indefensáveis e de privilégios encastelados na ordem estabelecida. Na medida em que se interessar pelo drama de seu tempo, o juiz poderá perceber a verdadeira dimensão e a inserção histórica de seu trabalho, situando e compreendendo a ordem jurídica no contexto humano global. Na medida em que acresça ao seu saber técnico uma visão de mundo tão dilatada quanto possível, o juiz enriquecer-se-á interiormente, podendo melhor avaliar os dados reais, humanos, que constituem a razão de ser, tantas vezes esquecida, de todo processo.”

Sensível a essa moderna hermenêutica e aos passos da “sociedade aberta dos intérpretes”, na expressão de PETER HÄBERLE, o Supremo Tribunal Federal vem ampliando, paulatinamente, a participação de terceiros que possam efetivamente contribuir para a ampliação do debate sobre as questões jurídicas, notadamente no âmbito do controle concentrado de constitucionalidade.

Ao fim e ao cabo, trata-se da aplicação do princípio democrático, uma vez que a admissão do “amigo da corte” inclui-se no amplo espectro da participação de setores da sociedade nas discussões sobre a inteireza do ordenamento jurídico em abstrato, no contexto da atividade do Supremo Tribunal Federal como “legislador negativo”, expressão cunhada há algumas décadas na jurisprudência suprema. A propósito da necessidade e da conveniência da abertura hermenêutica, salientou o Ministro GILMAR MENDES ao deferir os pedidos de inclusão de três entidades, como amicus curiae, na ADI n.º 3.484, DJU 23/8/2006:

“Essa construção jurisprudencial sugere a adoção de um modelo procedimental que ofereça alternativas e condições para permitir, de modo cada vez mais intenso, a interferência de uma pluralidade de sujeitos, argumentos e visões no processo constitucional. Essa nova realidade pressupõe, além de amplo acesso e participação de sujeitos interessados no sistema de controle de constitucionalidade de normas, a possibilidade efetiva de o Tribunal Constitucional contemplar as diversas perspectivas na apreciação da legitimidade de um determinado ato questionado.

Observa-se também que a constatação de que, no processo de controle de constitucionalidade, se faz, necessária e inevitavelmente, a verificação de fatos e prognoses legislativos, sugere a necessidade de adoção de um modelo procedimental que outorgue ao Tribunal as condições necessárias para proceder a essa aferição.

Esse modelo pressupõe não só a possibilidade de o Tribunal se valer de todos os elementos técnicos disponíveis para a apreciação da legitimidade do ato questionado, mas também um amplo direito de participação por parte de terceiros (des)interessados. O chamado Brandeis-Brief - memorial utilizado pelo advogado Louis D. Brandeis, no case Müller versus Oregon (1908), contendo duas páginas dedicadas às questões jurídicas e outras 110 voltadas para os efeitos da longa duração do trabalho sobre a situação da mulher - permitiu que se desmistificasse a concepção dominante, segundo a qual a questão constitucional configurava simples "questão jurídica" de aferição de legitimidade da lei em face da Constituição. (Cf., a propósito, HALL, Kermit L. (organizador), The Oxford Companion to the Supreme Court of United States, Oxford, New York, 1992, p. 85).

Hoje não há como negar a "comunicação entre norma e fato" (Kommunikation zwischen Norm und Sachverhalt), que, como ressaltado, constitui condição da própria interpretação constitucional. É que o processo de conhecimento aqui envolve a investigação integrada de elementos fáticos e jurídicos. (Cf., MARENHOLZ, Ernst Gottfried, Verfassungsinterpretation aus praktischer Sicht, in: Verfassungsrecht zwischen Wissenschaft und Richterkunst, Homenagem aos 70 anos de Konrad Hesse, Heidelberg, 1990, p. 53 (54)).

Nesse sentido, a prática americana do amicus curiae brief permite à Corte Suprema converter o processo aparentemente subjetivo de controle de constitucionalidade em um processo verdadeiramente objetivo (no sentido de um processo que interessa a todos) -, no qual se assegura a participação das mais diversas pessoas e entidades. A propósito, referindo-se ao caso Webster versus Reproductive Health Services (....), que poderia ensejar uma revisão do entendimento estabelecido em Roe versus Wade (1973), sobre a possibilidade de realização de aborto, afirma Dworkin que a Corte Suprema recebeu, além do memorial apresentado pelo Governo, 77 outros memoriais (briefs) sobre os mais variados aspectos da controvérsia - possivelmente o número mais expressivo já registrado - por parte de 25 senadores, de 115 deputados federais, da Associação Americana de Médicos e de outros grupos médicos, de 281 historiadores, de 885 professores de Direito e de um grande grupo de organizações contra o aborto (cf. DWORKIN, Ronald. Freedoms Law. Cambridge- Massachussetts. 2.ª ed., 1996, p. 45).

Evidente, assim, que essa fórmula procedimental constitui um excelente instrumento de informação para a Corte Suprema.

Não há dúvida, outrossim, de que a participação de diferentes grupos em processos judiciais de grande significado para toda a sociedade cumpre uma função de integração extremamente relevante no Estado de Direito. A propósito, Peter Häberle defende a necessidade de que os instrumentos de informação dos juízes constitucionais sejam ampliados, especialmente no que se refere às audiências públicas e às "intervenções de eventuais interessados", assegurando-se novas formas de participação das potências públicas pluralistas enquanto intérpretes em sentido amplo da Constituição (cf. Häberle, Peter. Hermenêutica Constitucional. A Sociedade Aberta dos Intérpretes da Constituição: contribuição para a Interpretação Pluralista e "Procedimental" da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre, 1997, p. 47-48).

Ao ter acesso a essa pluralidade de visões em permanente diálogo, este Supremo Tribunal Federal passa a contar com os benefícios decorrentes dos subsídios técnicos, implicações político-jurídicas e elementos de repercussão econômica que possam vir a ser apresentados pelos "amigos da Corte".

Essa inovação institucional, além de contribuir para a qualidade da prestação jurisdicional, garante novas possibilidades de legitimação dos julgamentos do Tribunal no âmbito de sua tarefa precípua de guarda da Constituição. É certo, também, que, ao cumprir as funções de Corte Constitucional, o Tribunal não pode deixar de exercer a sua competência, especialmente no que se refere à defesa dos direitos fundamentais em face de uma decisão legislativa, sob a alegação de que não dispõe dos mecanismos probatórios adequados para examinar a matéria.

Entendo, portanto, que a admissão de amicus curiae confere ao processo um colorido diferenciado, emprestando-lhe caráter pluralista e aberto, fundamental para o reconhecimento de direitos e a realização de garantias constitucionais em um Estado Democrático de Direito.”

Na ADI n.º 2.130, DJU 2/2/2001, consagrando a mesma orientação, salientou o Ministro CELSO DE MELLO:

“AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. INTERVENÇÃO PROCESSUAL DO AMICUS CURIAE. POSSIBILIDADE. LEI N.º 9.868/99 (ART. 7.º, § 2.º). SIGNIFICADO POLÍTICO-JURÍDICO DA ADMISSÃO DO AMICUS CURIAE NO SISTEMA DE CONTROLE NORMATIVO ABSTRATO DE CONSTITUCIONALIDADE. PEDIDO DE ADMISSÃO DEFERIDO.

"No estatuto que rege o sistema de controle normativo abstrato de constitucionalidade, o ordenamento positivo brasileiro processualizou a figura do amicus curiae (Lei n.º 9.868/99, art. 7.º, § 2.º), permitindo que terceiros - desde que investidos de representatividade adequada - possam ser admitidos na relação processual, para efeito de manifestação sobre a questão de direito subjacente à própria controvérsia constitucional. - A admissão de terceiro, na condição de amicus curiae, no processo objetivo de controle normativo abstrato, qualifica-se como fator de legitimação social das decisões da Suprema Corte, enquanto Tribunal Constitucional, pois viabiliza, em obséquio ao postulado democrático, a abertura do processo de fiscalização concentrada de constitucionalidade, em ordem a permitir que nele se realize, sempre sob uma perspectiva eminentemente pluralística, a possibilidade de participação formal de entidades e de instituições que efetivamente representem os interesses gerais da coletividade ou que expressem os valores essenciais e relevantes de grupos, classes ou estratos sociais. Em suma: a regra inscrita no art. 7.º, § 2.º, da Lei n.º 9.868/99 - que contém a base normativa legitimadora da intervenção processual do amicus curiae - tem por precípua finalidade pluralizar o debate constitucional.”

II – DOS REQUISITOS PARA ADMISSÃO DO AMICUS CURIAE

Na espécie, a Associação Nacional dos Procuradores Municipais – ANPM – cumpre os requisitos legais para legitimá-la a ingressar no feito como amicus curiae, na expressão do art. 7.º, § 2.º, da Lei n.º 9.868/1999, verbis:

“Art. 7.º Não se admitirá intervenção de terceiros no processo de ação direta de inconstitucionalidade.

§ 1.º (VETADO)

§ 2.º O relator, considerando a relevância da matéria e a representatividade dos postulantes, poderá, por despacho irrecorrível, admitir, observado o prazo fixado no parágrafo anterior, a manifestação de outros órgãos ou entidades.”

Com efeito, a representatividade adequada, ou pertinência temática, ou ainda, nas palavras do Ministro CESAR PELUSO, “adequacy of representation” (ADI n.º 3.329, DJU 26/5/2006), o interesse institucional e a relevância da matéria fazem-se amplamente presentes. Sobre o tema, colhe-se da lição de NELSON NERY JUNIOR e ROSA MARIA ANDRADE NERY que o relator poderá admitir:

“a manifestação de pessoa física ou jurídica, professor de direito, associação civil, cientista, órgão e entidade, desde que tenha respeitabilidade, reconhecimento científico ou representatividade para opinar sobre a matéria objeto da ação direta.”

No mesmo sentido, salienta EDGARD SILVEIRA BUENO FILHO:

“haverá sempre outras entidades de notória representatividade que, por isso, serão facilmente admitidas ao debate, dependendo apenas do tema discutido. É o caso das associações de magistrados, de advogados, de outros profissionais liberais, de empresários, de defesa de direitos humanos, de consumidores, do meio ambiente etc., quando o ato normativo questionado tiver relação com a atividade por eles desenvolvida.”

II.1 – Da relevância da matéria

Nesta ação direta de inconstitucionalidade, questiona-se a resolução do Senado Federal que autoriza a cessão da dívida ativa dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios às instituições financeiras.

Em outras palavras, trata-se da privatização do crédito tributário, por meio de um instituto jurídico tipicamente versado no direito comercial, o endosso-mandato.

A relevância da matéria se demonstra, principalmente, pelos aspectos jurídicos e econômicos.

No plano do ordenamento normativo, as aberrações se multiplicam, podendo-se identificar as seguintes violações frontais da Constituição:

a) escolha da instituição financeira sem prévia licitação;

b) indelegabilidade das funções de Estado descritas no art. 132 da Constituição;

c) função tributária do Estado como “atividade administrativa plenamente vinculada” (art. 3.º do Código Tributário Nacional);

d) indelegabilidade da competência tributária (art. 7.º do Código Tributário Nacional);

e) precedência da administração fazendária e dos servidores fiscais sobre os demais setores administrativos (art. 37, XVIII, da Constituição);

f) princípio da simetria expresso no art. 29 da Constituição e amplamente reconhecido na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que estabelece os contornos da autonomia estadual e municipal;

g) incompetência do Senado Federal, por não se incluir a matéria em nenhum item arrolado no art. 52 da Constituição ;

h) matéria reservada à lei complementar, por expressa determinação dos arts. 146, III , 163, I , e 165, § 9.º, I e II da Constituição, e disciplinada pelo Código Tributário Nacional (arts. 201 a 204) e pela Lei n. 4.320/64 (art. 39);

i) quebra do sigilo fiscal por meio de endosso-mandato, concedendo-se à instituição financeira particular as informações tributárias atinentes ao universo de contribuintes dos tributos estaduais e municipais;

j) competência dos Municípios para instituir e arrecadar seus tributos (art. 30, III, da Constituição).

No plano econômico, os impactos se agigantam.

Primeiro, porque os valores dos créditos públicos de todos os Estados e Municípios da Federação, além do Distrito Federal, em dívida ativa ultrapassam a casa dos bilhões.

Com efeito, o imposto sobre a circulação de mercadorias e o imposto sobre serviços (ICMS e ISS), respectivamente da competência estadual e municipal, são os tributos que atingem os setores mais expressivos da economia, com vultosa arrecadação.

Segundo, porque as instituições financeiras terão o crédito público como instrumento de captação de clientela, mediante negociações particulares de dívidas de outra natureza com a dívida tributária.

Terceiro, pelo benefício da prescrição qüinqüenal como meio de favorecimento de grandes devedores. Com efeito, evidencia-se a diferença entre as dívidas fundamentadas no direito privado e as fundamentadas no direito público. Enquanto o direito privado tem a vontade como fonte da obrigação, o direito público depende de lei, o que torna disponível a obrigação baseada no direito civil e indisponível o crédito tributário.

No momento em que as instituições financeiras, sabidamente regidas pelo direito privado, passarem a administrar a receita tributária de seus clientes, o crédito público será objeto de transação privada.

II.2 – Da representatividade e do interesse institucional da ANPM

A Associação Nacional dos Procuradores Municipais – ANPM – é sociedade civil sem fins lucrativos, representativa da categoria profissional dos Procuradores Municipais e integrada pelos membros da carreira do mesmo nome.

Desde sua fundação, a ANPM vem participando ativamente dos debates nacionais em prol dos Procuradores dos Municípios de todo o País, seja na preparação dos encontros e eventos jurídicos de interesse da categoria, seja nas reuniões e discussões sobre propostas legislativas que interferem na defesa jurídica dos Municípios.

Mais recentemente, a ANPM tem atuado na Câmara dos Deputados e no Senado Federal com vistas à aprovação da Proposta de Emenda Constitucional que inclui expressamente os Procuradores Municipais no rol do art. 132 da Constituição , tendo a ANPM logrado o êxito de conseguir a aprovação nas Comissões internas daquelas Casas e inserir o tema na próxima votação da Reforma do Judiciário.

De acordo com o art. 3.º de seu Estatuto, a Associação tem por finalidade “o estudo, defesa, coordenação e representação dos interesses econômicos e profissionais dos integrantes da categoria de Procuradores Municipais” (estatuto anexo).

Essa qualidade de representante dos interesses dos Procuradores Municipais já seria suficiente, por si só, para legitimar a ANPM a ingressar no feito como amicus curiae. Aliás, trata-se do questionamento da constitucionalidade de Resolução do Senado Federal que permite a terceirização da dívida ativa dos Municípios.

Patenteia, portanto, o interesse institucional da ANPM para pleitear sua intervenção na qualidade de amicus curiae nesta ação direta de inconstitucionalidade, com o objetivo de contribuir para o debate da relevantíssima questão versada na ação, corroborando a tese da inconstitucionalidade da Resolução n. 33 do Senado Federal, ato normativo impugnado.

III – DA OPORTUNIDADE PROCEDIMENTAL DA INTERVENÇÃO DO AMICUS CURIAE

O silêncio da Lei n.º 9.868/1999 sobre o momento mais adequado para a intervenção do amicus curiae motivou alguma dissonância inicial na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal.

Todavia, o Plenário do Supremo Tribunal tem firmado o entendimento de que a intervenção não se vincula ao prazo previsto para as informações prestadas pelos réus, conforme exemplificam as ADIs n.º 2.238, DJU 31/8/2001, rel. Min. ILMAR GALVÃO, e 1.104, DJU 29/10/2003, rel. Min. GILMAR MENDES.

Verifica-se a mudança de orientação até mesmo de Ministros que já haviam manifestado pela limitação do prazo para a intervenção do amicus curiae, como o Ministro CEZAR PELUSO, que, na ADI n.º 2.937, DJU 23/9/2003, havia concluído pela aplicação analógica do art. 6.°, parágrafo único, da Lei n.º 9.868/99, para evitar o “abuso da admissibilidade ilimitada de intervenções com graves transtornos ao procedimento”.

Posteriormente, o próprio Ministro CEZAR PELUSO reviu esse posicionamento ao manifestar-se na ADI n.º 3.474 (DJU 19/10/2005), neste sentido:

“já não me parece deva ser esse o resultado da interpretação sistemática e teleológica da modalidade interventiva de que se cuida. A admissão legal da figura do amicus curiae, tradicional no sistema da common law, constitui evidente manifestação do impacto que o julgamento de ação de controle concentrado de constitucionalidade produz sobre a ordem jurídico-social. Com prevê-la, abre-se um canal valioso para a participação de membros do corpo social interessados no processo de tomada de decisão da Corte, em reforço da legitimidade e do caráter plural e democrático da atividade exercida pelo julgador.”

O Supremo Tribunal Federal admite a intervenção do amicus curiae, inclusive, quando o feito já está pautado para julgamento (ADI n.º 2.548, rel. Min. GILMAR MENDES, DJU 24/10/2005), quando este já teve início, para fins de sustentação oral, após a leitura do relatório (ADI n.º 2.777-QO, rel. Min. CÉZAR PELUSO, e ADI n.º 2.675-QO, rel. Min. CARLOS VELLOSO).

Na ADI n.º 3.320-MC, rel. Min. CELSO DE MELLO, igualmente se afastou a limitação do prazo para intervenção do amicus curiae, mesmo em se tratando de ação direta de inconstitucionalidade pelo procedimento sumário do art. 12 da Lei n.º 9.868/99.

Destarte, a intervenção da ANPM atende ao momento procedimental informado pela melhor e mais atual orientação, devendo ser admitida e apreciada.

IV – DA PETIÇÃO INICIAL DA AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE

A petição inicial da ação argumenta, preliminarmente, com a legitimidade ativa da autora, a pertinência temática e a eficácia geral e abstrata do ato impugnado, a amparar o cabimento da ação direta de inconstitucionalidade. Sobre o tema de fundo, sustenta a violação dos seguintes artigos da Constituição, com estas alegações:

a) 52, V a IX, e 155, II, § 2.°, V: incompetência do Senado para versar a matéria contida na Resolução n.º 33;

b) 61, § 1.°, II, e: a competência para propor leis que disponham sobre os órgãos da Administração Pública é privativa do Presidente da República. No caso, a Resolução altera a competência institucional das Procuradorias dos Estados ao transferir para os bancos a cobrança da dívida ativa;

c) 132: a “representação judicial e a consultoria jurídica”, que incluem a cobrança da dívida ativa, são atividades privativas das Procuradorias dos Estados e não podem ser subtraídas por meio de Resolução do Senado Federal;

d) 146, III: a competência, a obrigação e o crédito tributários são matérias próprias de lei complementar, versadas no Código Tributário Nacional, e inclui poderes para instituição e cobrança de tributos. A delegação da cobrança e da concessão de parcelamentos para as instituições financeiras, por meio de Resolução do Senado Federal, ofende a reserva de lei complementar expressa na Constituição.

V –DA RESOLUÇÃO N.º 33 DO SENADO FEDERAL – ATO IMPUGNADO

O ato impugnado nesta ação direta consiste na Resolução n.º 33, do Senado Federal, e tem o seguinte teor:

R E S O L U Ç Ã O N.º 33, DE 2006

Autoriza a cessão, para cobrança, da dívida ativa dos Municípios a instituições financeiras e dá outras providências.

O Senado Federal resolve:

Art. 1.º Podem os Estados, Distrito Federal e Municípios ceder a instituições financeiras a sua dívida ativa consolidada, para cobrança por endosso-mandato, mediante a antecipação de receita de até o valor de face dos créditos, desde que respeitados os limites e condições estabelecidos pela Lei Complementar n.º 101, de 4 de maio de 2000, e pelas Resoluções nºs 40 e 43, de 2001, do Senado Federal.

Art. 2.º A instituição financeira endossatária poderá parcelar os débitos tributários nas mesmas condições em que o Estado, Distrito Federal ou Município endossante poderia fazê-lo.

Art. 3.º A instituição financeira endossatária prestará contas mensalmente dos valores cobrados.

Art. 4º Uma vez amortizada a antecipação referida no art. 1.º, a instituição financeira repassará mensalmente ao Estado, Distrito Federal ou Município o saldo da cobrança efetivada, descontados os custos operacionais fixados no contrato.

Art. 5.º O endosso-mandato é irrevogável enquanto não amortizada a antecipação referida no art. 1.º.

Art. 6.º Esta Resolução entra em vigor na data de sua publicação.

A par dos argumentos já expendidos na petição inicial, com os quais concorda a ANPM e a ela se aplicam inteiramente, tornando desnecessária a reprodução, outros pontos merecem realce, conforme se passa a expor.

VI – DA NATUREZA JURÍDICA DA TERCEIRIZAÇÃO DA COBRANÇA – ENDOSSO-MANDATO

O ato impugnado prevê expressamente a possibilidade de endosso-mandato como forma de ceder a cobrança da dívida ativa consolidada dos Municípios.

Isso significa o uso de instrumento de direito privado para ceder crédito de natureza pública e, portanto, direito indisponível. Com efeito, o endosso-mandato, nas palavras de FRAN MARTINS, “é, na realidade, um falso endosso, pois nem transmite os direitos emergentes do título nem transfere a propriedade da letra, mas simplesmente a sua posse.”

PONTES DE MIRANDA, no mesmo sentido, define endosso-mandato como “aquele em que o endossante da letra de câmbio transfere a outra pessoa o exercício de conservação dos seus direitos cambiários, sem dispor deles”

WALDÍRIO BULGARELLI, com sua habitual didática, esclarece:

“É dos nossos usos o endosso-mandato, pelo qual não se transfere a propriedade do título, mas dão-se poderes ao mandatário para agir em seu nome [...].

O endosso-mandato é muito comum nas operações de cobrança, entre os empresários e os bancos, ficando estes encarregados de proceder à cobrança do título, como mandatários daqueles. Tem por isso, o endossatário-mandatário tanto os direitos como as obrigações da sua condição, podendo e, em muitos casos, devendo agir em relação ao título, para assegurar direitos etc.”

O art. 917 do Código Civil prevê expressamente:

“Art. 917. A cláusula constitutiva de mandato, lançada no endosso, confere ao endossatário o exercício dos direitos inerentes ao título, salvo restrição expressamente estatuída.

§ 1.° O endossatário de endosso-mandato só pode endossar novamente o título na qualidade de procurador, com os mesmos poderes que recebeu.

§ 2.° Com a morte ou a superveniente incapacidade do endossante, não perde eficácia o endosso-mandato.

§ 3.° Pode o devedor opor ao endossatário de endosso-mandato somente as exceções que tiver contra o endossante.”

Ao comentar o dispositivo, registrou RICARDO FIÚZA:

“Este artigo se refere à hipótese de endosso-mandato ou endosso-procuração, quando o credor endossa o título em favor de terceiro apenas para que este o represente na cobrança do crédito em face do devedor, para posterior prestação de contas.”

Logo se apercebe a inaplicabilidade do instituto às contratações celebradas pelo Poder Público, que se amarram às regras estritas da licitação expressas nos arts. 22, XXVII, e 37, XXI, da Constituição, a exigir que os “serviços ... serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações”.

Com efeito, de um lado, tem-se o instituto do endosso-mandato, que não transmite ao endossatário-mandatário a titularidade dos direitos emergentes do título, mas apenas o exercício desses direitos, continuando proprietário o endossante-mandante e apenas possuidor o endossatário-mandatário.

De outro lado, há os rígidos contornos da sistemática das licitações e das contratações públicas, que encontram disciplina constitucional e se regulamentam amplamente na esfera infraconstitucional, a exemplo maior da Lei n.º 8.666/1993.

Em breves palavras, as exigências próprias do direito público para licitação e contratação mostram-se incompatíveis com o instituto do endosso-mandato.

Além disso, ainda que se tratasse apenas de direito privado, há a impropriedade da confusão entre os institutos do mandato e da cessão de direitos. A propósito, o mandato não é instrumento adequado para ceder direitos. “Cessão de créditos” é modo de transmissão de obrigações, conforme a letra dos arts. 286 a 298 do Código Civil.

Assim, resta equivocada a redação do art. 1º da Resolução, ao “ceder” a “dívida ativa” por meio de “endosso-mandato”

VII – DA IMPOSSIBILIDADE DE DELEGAÇÃO DA ADVOCACIA PÚBLICA – ATIVIDADE TÍPICA DE ESTADO – COMPETÊNCIA PRIVATIVA DAS PROCURADORIAS

A Resolução impugnada terceiriza a cobrança da dívida ativa dos Municípios, mediante contrato oneroso de mandato que permite, a antecipação, pelo mandatário (instituição financeira, no caso) ao mandante (o Município), de 30% (trinta por cento) do valor de face dos créditos a serem cobrados, além de custos operacionais a serem arcados pelo Poder Público mandante.

Por via transversa, está-se a permitir que os bancos contratem serviços de advocacia privada para a execução judicial da dívida ativa dos Municípios, em frontal contrariedade ao art. 132 da Constituição, já transcrito.

A atividade das procuradorias dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios inclui-se entre as atividades típicas de Estado e, por isso mesmo, impassíveis de delegação, conforme já decidiu o Supremo Tribunal Federal na ADI n.º 881-MC, rel. Min. CELSO DE MELLO, verbis:

ADI 881-MC, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 25/04/97

"O desempenho das atividades de assessoramento jurídico no âmbito do Poder Executivo estadual traduz prerrogativa de índole constitucional outorgada aos Procuradores do Estado pela Carta Federal. A Constituição da República, em seu art. 132, operou uma inderrogável imputação de específica e exclusiva atividade funcional aos membros integrantes da Advocacia Pública do Estado, cujo processo de investidura no cargo que exercem depende, sempre, de prévia aprovação em concurso público de provas e títulos."

O mandato ad judicia, para advogados privados, só se admite para causas específicas, diante de situações excepcionais, conforme registra este precedente:

Pet 409-AgR, Rel. Min. Celso de Mello, DJ 29/06/90

"Representação judicial não excludente da Constituição de mandatário ad judicia para causa específica. Ao conferir aos procuradores dos Estados e do Distrito Federal a sua representação judicial, o artigo 132 da Constituição veicula norma de organização administrativa, sem tolher a capacidade de tais entidades federativas para conferir mandato ad judicia a outros advogados para causas especiais."

Não é o caso da Resolução impugnada, que terceiriza às instituições financeiras a cobrança da dívida ativa dos municípios e, por via indireta, permite a contratação de advogados particulares para exercer a cobrança do crédito tributário. Não se trata, portanto, de “causas específicas” ou “causas especiais”, mas de TODAS as demandas referentes à cobrança da dívida ativa.

Neste contexto, a indelegabilidade das atividades típicas de Estado restou assentada no Supremo Tribunal Federal no julgamento da ADI n. 1.717-DF, verbis:

ADI n.º 1.717, DJU 28/3/2003, rel. Min. SYDNEY SANCHES

“a interpretação conjugada dos artigos 5.°, XIII, 22, XVI, 21, XXIV, 70, parágrafo único, 149 e 175 da Constituição Federal, leva à conclusão, no sentido da indelegabilidade, a uma entidade privada, de atividade típica de Estado, que abrange até poder de polícia, de tributar e de punir, no que concerne ao exercício de atividades profissionais regulamentadas, como ocorre com os dispositivos impugnados.

A cobrança do tributo somente pode ocorrer “mediante atividade administrativa plenamente vinculada”, na esteira do art. 3.º do Código Tributário Nacional. Isso significa que se trata de atividade típica do poder de império estatal e, portanto, indelegável a particular.

No plano constitucional, o capítulo I do título VI da Constituição revela a titularidade exclusiva dos entes da federação para exercer a competência tributária, desde os “princípios gerais” até as “limitações” recíprocas do poder de tributar e a “repartição das receitas tributárias , passando pela discriminação taxativa e específica dos impostos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios . Corrobora no mesmo sentido o art. 37, XVIII, CF, que assegura “precedência” da “administração fazendária e seus servidores fiscais” “sobre os demais setores administrativos, na forma da lei”.

Destarte, a edição de Resolução, pelo Senado Federal, que terceiriza a dívida ativa dos municípios desprestigia a “precedência” da “administração fazendária” a que se refere a Constituição. Afinal, a dívida ativa e a formalização dos títulos de crédito previstos em lei – as certidões de dívida ativa (CDAs) – inserem-se na competência dos setores fazendários e procuradorias dos Municípios e das demais pessoas da federação.

O art. 7.º do Código Tributário Nacional, por sua vez, estabelece a indelegabilidade da competência tributária, permitindo ao particular o “ônus, a tarefa de arrecadar o tributo”. “Não há delegação, mas encargo” , nas palavras de ALIOMAR BALEEIRO.

SACHA CALMON expressa ser “possível incumbir a pessoas de Direito Privado, naturais e jurídicas, a função ou encargo de arrecadar tributos” , o que não significa arrecadar tributos, ou seja, receber o pagamento a partir de endosso-mandato de certidões de dívida ativa.

Com efeito, o próprio art. 7.º do Código Tributário Nacional prevê que “as funções de arrecadar ou fiscalizar tributos, ou de executar leis, serviços, atos ou decisões administrativas em matéria tributária” só podem ocorrer “por uma pessoa jurídica de direito público a outra”.

No caso do ato impugnado, a terceirização da dívida ativa inclui as funções de arrecadar e de fiscalizar, que se transmitirão do Município (e das outras pessoas da federação) diretamente à instituição financeira. Em duas palavras, a Resolução impugnada delega competência tributária, em contrariedade às regras do sistema tributário nacional.

VIII – DA COMPETÊNCIA DOS MUNICÍPIOS PARA INSTITUIR E ARRECADAR OS TRIBUTOS DE SUA COMPETÊNCIA – ART. 30, III, DA CONSTITUIÇÃO

O art. 30, III, da Constituição expressa a competência tributária do Município nestes termos:

“Art. 30. Compete aos Municípios: [...]

III – instituir e arrecadar os tributos de sua competência, bem como aplicar suas rendas, sem prejuízo da obrigatoriedade de prestar contas e publicar balancetes nos prazos fixados em lei;”

O caráter exclusivo da competência estabelecida no art. 30 é reconhecido na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, conforme exemplifica este precedente:

ADI n.º 2.381-RS, DJU 14/12/2001, rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE

“No modelo federativo brasileiro - no ponto acentuado na Constituição de 1988 - os temas alusivos ao Município, a partir das normas atinentes à sua criação, há muito não constituem - ao contrário do que, na Primeira República, pudera sustentar Castro Nunes (Do Estado Federado e sua Organização Municipal, 2.ª ed., Câmara dos Deputados, 1982, passim) - uma questão de interesse privativo do Estado-membro. Ente da Federação (CF, art. 18), que recebe diretamente da Constituição Federal numerosas competências comuns (art. 23) ou exclusivas (art. 30) - entre elas a de instituir e arrecadar tributos de sua área demarcada na Lei Fundamental (art. 156) - além de direito próprio de participação no produto de impostos federais e estaduais (art. 157-162) - o Município, seu regime jurídico e as normas regentes de sua criação interessam não apenas ao Estado- membro, mas à estrutura do Estado Federal total.

A literalidade do artigo, associada à sua interpretação sistemática com outros dispositivos constitucionais atinentes aos Municípios (arts. 1.º, 18, 23, 29, 156, 182, entre outros), permite a inferência de ser impossível a delegação, pelo Município, do poder de arrecadar tributos às instituições financeiras.

IX – DA OFENSA À RESERVA DE LEI COMPLEMENTAR – ART. 146, III, b, DA CONSTITUIÇÃO – DA INCOMPETÊNCIA DO SENADO FEDERAL – DA VIOLAÇÃO DO PODER DO PRESIDENTE DA REPÚBLICA DE INICIATIVA PRIVATIVA DE LEIS – ART. 61, § 1.º, II, b, DA CONSTITUIÇÃO

A Resolução impugnada viola o comando do art. 146, III, da Constituição, que dispõe:

“Art. 146. Cabe à lei complementar: [...]

III - estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre: [...]

b) obrigação, lançamento, crédito, prescrição e decadência tributários;”

Ao dispor sobre o endosso-mandato como forma de cessão de crédito tributário e ao permitir o parcelamento do débito pelo banco endossatário-mandatário, a Resolução n.º 33 estabelece regras específicas sobre obrigação e crédito tributário, matéria reservada a lei complementar por expressa determinação constitucional.

A propósito, em parecer emitido para a Assessoria Parlamentar do Gabinete do Ministério da Fazenda, a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional manifestou-se pela inconstitucionalidade da Resolução n.º 33. No que concerne à reserva de lei complementar, salientou:

“A autorização genérica dada pelo Senado Federal aos municípios para terceirizar a cobrança de sua dívida ativa, seja tributária ou não, caracteriza-se como norma geral de direito tributário (no que diz respeito à dívida ativa de natureza tributária) e norma geral de direito financeiro (no que diz respeito à dívida ativa de natureza não tributária), devendo assim ser viabilizada mediante lei complementar, conforme o disposto no art. 146, III e no art. 163, I c/c 165, §9, I e II, todos da Constituição Federal, implicando também em invasão pelo Senado Federal do campo de competências reservado constitucionalmente ao Presidente da República (art. 61, §1º, II, “b” e art. 66) e à Câmara dos Deputados (art. 65).

30. Com evidente resultado para o caso, veja-se a este respeito que a matéria relacionada à dívida ativa encontra tratamento em diplomas normativos recepcionados pela Constituição Federal de 1988 como leis complementares: a Lei n.º 5.172, de 25 de outubro de 1966 (Código Tributário Nacional), arts. 201 a 204 e a Lei n.º 4.320, de 17 de março de 1964 (finanças públicas), art. 39. Uma estabelece normas gerais de direito tributário e a outra estabelece normas gerais de direito financeiro, sendo que ambas possuem um campo em comum que é justamente o trato da dívida ativa de natureza tributária. Assim, não há como omitir que o assunto é de lei complementar, não podendo ser tratado mediante resolução do Senado Federal.

Em se tratando de matéria reservada à lei complementar, resulta a incompetência do Senado Federal para dispor sobre o tema e também a ofensa ao poder de iniciativa de lei previsto no art. 61, § 1.º, II, b, da Constituição, que diz ser da iniciativa privativa do Presidente da República as leis que disponham sobre matéria tributária.

A incompetência do Senado Federal, aliás, se estampa por não versar a Resolução n.º 33 nenhum dos temas arrolados no art. 52 da Constituição, conforme fartamente se demonstrou na inicial desta ação direta, que procedeu à análise de inciso por inciso do artigo.

X – DA VIOLAÇÃO DO ART. 5.º, XII, DA CONSTITUIÇÃO – INVIOLABILIDADE DO SIGILO DE DADOS – OFENSA AO SIGILO FISCAL

A Resolução impugnada afronta a garantia individual do sigilo de dados, expressa no art. 5.º, XII, da Constituição, nestes termos:

“XII - é inviolável o sigilo da correspondência e das comunicações telegráficas, de dados e das comunicações telefônicas, salvo, no último caso, por ordem judicial, nas hipóteses e na forma que a lei estabelecer para fins de investigação criminal ou instrução processual penal;

A quebra do sigilo de dados depende da ocorrência de situações excepcionais, verificáveis caso a caso, conforme registra a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, verbis:

HC n.º 86.094-PE, DJU 11/11/2005, rel. Min. MARCO AURÉLIO

“PRIVACIDADE - SIGILO DE DADOS - REGRA E EXCEÇÃO. A regra, constante do rol constitucional de garantias do cidadão, é a manutenção de privacidade, cujo afastamento corre à conta da exceção. DECISÃO JUDICIAL - FUNDAMENTAÇÃO - SIGILO DE DADOS - AFASTAMENTO. O princípio da vinculação resulta na necessidade imperiosa de os pronunciamentos judiciais serem fundamentados. Implicando o afastamento de garantia constitucional - intangibilidade de dados relativos à pessoa -, indispensável é a análise dos parâmetros do caso concreto, fundamentando o Estado-Juiz a decisão.”

Com efeito, só razões excepcionais justificam o descumprimento dessa regra, como interesse público, ordem pública, a serem apurados em cada situação levada a exame do Poder Judiciário e fundamentados, conforme assentou o Supremo Tribunal Federal em numerosos precedentes referentes à quebra de sigilo fiscal no âmbito das Comissões Parlamentares de Inquérito, a exemplo dos seguintes arestos:

MS n.º 24.029-DF, DJU 22/3/2002, rel. Min. MAURÍCIO CORRÊA

EMENTA: MANDADO DE SEGURANÇA. COMISSÃO PARLAMENTAR MISTA DE INQUÉRITO. QUEBRA DE SIGILO BANCÁRIO, FISCAL E TELEFÔNICO. FALTA DE FUNDAMENTAÇÃO. NULIDADE DO ATO IMPGNADO.

PRECEDENTES. 1. Se não fundamentado, nulo é o ato da Comissão Parlamentar de Inquérito que determina a quebra dos sigilos bancário, fiscal e telefônico. 2. Meras ilações e conjecturas, destituídas de qualquer evidencia material, não têm o condão de justificar a ruptura das garantias constitucionais preconizadas no artigo 5º, X e XII, da Constituição Federal. Segurança concedida.

MS n.º 23.882-PR, DJU 1.º/2/2002, rel. Min. MAURÍCIO CORRÊA

EMENTA: MANDADO DE SEGURANÇA. COMISSÃO PARLAMENTAR DE INQUÉRITO (CPI DO FUTEBOL). QUEBRA DE SIGILOS FISCAL E BANCÁRIO. EXIGÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO DO ATO IMPUGNADO. 1. Esta Corte firmou entendimento de que as Comissões Parlamentares de Inquérito são obrigadas a demonstrar a existência concreta de causa provável que legitime a quebra de sigilos bancário e fiscal. 2. A fundamentação deve acompanhar o ato submetido à deliberação da CPI, sendo inviáveis argumentações outras expostas no curso do mandado de segurança. 3. Hipótese de deficiência na fundamentação da quebra de sigilo do primeiro impetrante, por apoiar-se em meras conjecturas.

No caso em exame, a Resolução impugnada permite que a instituição financeira passe a deter informações sobre as dívidas fiscais de cada contribuinte do Município, do Estado ou do Distrito Federal.

Realmente, ao transferir a certidão de dívida ativa para o banco, o Município (e as outras pessoas da federação) estará também transferindo os “dados” a que se refere o direito individual inscrito no art. 5.º, XII. Isso significa a quebra do sigilo fiscal, pela via transversa da indigitada Resolução n.º 33 do Senado Federal.

Como cediço, a obtenção dessas informações sigilosas pelas instituições financeiras permitirá o uso dos créditos e débitos como forma de captação de clientela, com o beneplácito das regras de direito público, como a prescrição, por exemplo.

Todos sabem que as negociações entre os bancos e seus clientes dependem fundamentalmente da quantidade de dinheiro e do potencial de investimento em transações bancárias. Nesse passo, informações sobre os créditos tributários permitem aos bancos conhecer o volume dos serviços prestados (ISS) ou o valor de circulação de mercadorias (ICMS), fatos geradores dos principais tributos municipal e estadual.

Além disso, o prazo prescricional dos créditos tributários é qüinqüenal, diferentemente do direito privado, que tem regras específicas para cada obrigação pactuada, seja no direito civil, seja no direito comercial.

Em outras palavras, a Resolução está a permitir que institutos próprios do direito público, tal qual as normas gerais de direito tributário, passem a ser regidos pelo direito privado, capitaneados pelo endosso-mandato, com os desdobramentos de todas as regras peculiares que disciplinam as transações realizadas entre os bancos e sua clientela particular.

XI – CONCLUSÃO

Ante o exposto, evidencia-se a inconstitucionalidade da Resolução n.º 33 do Senado Federal, em sua íntegra, merecendo ser julgada procedente esta ação direta de inconstitucionalidade.

Na hipótese de ser determinada a realização de provas no curso do procedimento, protesta a ANPM pela possibilidade de seu amplo acompanhamento e apresentação de documentos e outras manifestações que se façam necessárias e pertinentes.

Protesta, outrossim, pela realização de sustentação oral na sessão de julgamento, mediante intimação do subscritor desta, nos termos do art. 131, § 2.º, do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal.

Pede deferimento.

Brasília, 20 de outubro de 2006.

Cristiano Reis Juliani

Advogado – OAB/MG n.º 74.021 e DF n.º 23.257

RELAÇÃO DE DOCUMENTOS

Doc. 1 – Procuração

Doc. 2 – Estatuto da Associação Nacional dos Procuradores Municipais

Doc. 3 – Ata da assembléia de constituição da Associação Nacional dos Procuradores Municipais

Doc. 4 – Certidão do Cartório de Registro Civil de Pessoas Jurídicas, em que consta a ata da assembléia geral ordinária que elegeu a Diretoria para o biênio 2004/2006

Referências: Senado Federal, 19 de novembro de 2006.
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